segunda-feira, 25 de julho de 2011

BOLINHOS DE CHUVA E O ENSINO RELIGIOSO



Li um artigo de opinião sobre o  Ensino Religioso em escolas públicas e quero compartilhar um trecho com vocês.


BOLINHOS DE CHUVA E O ENSINO RELIGIOSO


        Quando eu era criança uma das coisas que mais gostava de fazer era observar minha avó na cozinha. Até hoje, este é um dos lugares preferidos de minhas lembranças. Eu chegava da escola, almoçava, ajudava com a louça e sentava na enorme bancada de mármore da pia para vê-la preparar alguma delícia para o lanche das tardes. Ali eu ouvia da família que ficara na Itália, de cinema, de canções e histórias que ela gostava. Certa tarde, a guloseima da vez eram seus famosos bolinhos de chuva que devorávamos com café bem quentinho. Como sempre, dona Maria misturava o leite morno à farinha e eu, que já reivindicava há tempos ajudar, pedi para quebrar os ovos. Foi quando ela me disse: “Isso não é assim não filhinha! Isso tem C I Ê N C I A!” Dali para frente não mudaria. Toda vez que minha avó queria dizer que algo pedia uma metodologia mais complexa e algum experimento prático cujo resultado exigisse comprovação, ela impostaria a voz e repetiria a frase “Isso       tem  C I Ê N C I A”, com as sílabas bem separadas. Naquela mesma bancada, minha avó que era muito católica, já tinha me dito havia algum tempo que, para acreditar que um dia eu conheceria sua mãe, minha bisavó, no céu, era preciso ter FÉ.  “Tem coisa filhinha, que só tendo muita FÉ!”.

              Já FÉ, ela pronunciava num monossílabo forte, definitivo e encerrado. Então, foi na cozinha de minha avó que comecei a aprender que havia campos diferentes de saber e modos diferentes de perceber, conhecer e interpretar a vida. Alguns diriam respeito à ciência, outros, à fé. Aos poucos as coisas que precisavam ficar mais claras sobre a ciência ficaram mais claras na escola, com tudo o que o mundo da escola trazia: professores, professoras, colegas, livros, cinema. E, as que precisavam ficar mais claras sobre a fé ficaram mais claras na igreja, que eu também freqüentava desde pequena, e com tudo o que o mundo da Igreja significava: padres, freiras, colegas, catequese, missas, livros, grupo jovem, cinema.

            Para a minha avó, a ciência organizava uma certa maneira de pensar e fazer certas coisas que ia garantir, numa significativa quantidade de vezes, que, misturados os ingredientes tais e de uma maneira específica, seus bolinhos de chuva saíssem daquela forma e não de outra. É claro que, como toda ciência séria, é preciso considerar as variáveis e as famosas circunstâncias. Os modos como farinhas são produzidas, vendidas e armazenadas, o estado dos ovos, as condições de trabalho e mesmo as motivações e o estado de espírito da minha avó. Isso serve tanto para os bolinhos de chuva, como para os cientistas e a clonagem, a engenharia genética, as investigações sobre o universo.

            Já o campo da fé organizaria e daria soluções para outras coisas importantes para ela. Por exemplo, a saudade que ela sentia de sua mãe. O problema é quando, na escola, se mistura uma coisa e outra sob o mesmo estatuto. É misturar numa aula de ciências, bolinhos de chuva e vida eterna. Para a primeira, ainda que com sabores ou recheios diferentes, haverá possibilidades de verificar a eficácia ou não de sua produção. Para a segunda, 50 alunos darão 158 respostas diferentes.

        Definitivamente, a sala de aula não deve ser o espaço de legitimação de nenhuma delas e, para mim, por dois motivos. Primeiro, porque nenhuma das 158 respostas se comprova, a não ser no dentro da fé de cada um. Segundo, porque empoderando e legitimando uma, ou as semelhantes em aspectos fundamentais, outras tantas seriam excluídas e desempoderadas. E não adianta dizer que a disciplina de Ensino Religioso não vai legitimar nenhuma resposta. Se não fosse para cumprir esse objetivo não haveria tanto empenho em difundi-la.

       Por todas essas coisas considerei muito acertada a decisão contrária à implantação do Ensino Religioso nas escolas do município tomada unanimemente pelo Conselho Municipal do Rio de Janeiro através do parecer 04/2011, publicado no Diário Oficial de 24 de fevereiro. O corajoso documento defende o caráter laico da escola pública e afirma compreender que o Ensino Religioso não se constitui em uma área de conhecimento específica que deva ser tratada nos moldes disciplinares.
       Questiona, ainda, que se, como prescreve a lei, o Ensino Religioso é de matrícula facultativa ao aluno, como pode fazer parte dos horários normais das escolas públicas de Ensino Fundamental? E como computar a carga horária dos alunos que optarem por não freqüentá-lo?

      Pergunta com propriedade, como pensar o estabelecimento de conteúdos que respeitem a diversidade cultural e religiosa, ouvindo entidades civis constituídas pelas diferentes denominações religiosas, sem que isso represente qualquer forma de proselitismo? São questões extremamente pertinentes e para as quais já temos respostas se olharmos o que acontece com o Ensino Religioso no Estado. As entidades religiosas não são apenas “ouvidas”. Elas indicam seus representantes para as coordenações de Ensino Religioso na Secretaria de Educação. E é preciso que se diga que só os credos católicos e evangélicos possuem representações. As entidades também têm autonomia para definirem o conteúdo da disciplina.

       Quando dizemos que a escola não é lugar de religião significa que as diferentes religiões estão proibidas de circularem na escola? Não, pelo contrário. Tudo circula na escola, porque a escola é espaço de circularidades, verdadeiro e infinito redemoinho de tensões. Para professores e professoras existe, portanto, mais um, entre muitos desafios: olhar a circularidade e antes de qualquer coisa, reconhecê-la...

       Engessar o que deve circular livremente na escola como potências de aprendizagens é ruim. É tentar caçar o redemoinho e domá-lo, coisa que me parece impossível. A disciplina de Ensino Religioso quer isso: caçar redemoinhos e engessá-los. Diz que não catequiza e não discrimina. Salvo alguma exceção, não é verdade. E se a exceção como alternativa criadora é importante, ela é o que é: exceção, não regra.

       Concordando com o físico brasileiro Marcelo Gleiser, também não acredito que a função da ciência deva ser tirar Deus das pessoas, mas “oferecer uma descrição do mundo natural cada vez mais completa, baseada em experimentos e observações que podem ser repetidos ou ao menos contrastados por vários grupos”. No mesmo sentido, Gleiser lembra que Galileu criticou os teólogos católicos, dizendo que a função da bíblia não é explicar os movimentos dos planetas e sim como obter a salvação eterna.  (“Não é explicar como os céus vão, mas como se vai para o Céu.”) Para o físico brasileiro, muitos cientistas acreditam que o estudo da ciência serve para comprovar a beleza da criação, mas a religião não pode pretender ocupar o lugar da ciência.

         O obscurantista não vê isso. Ele nega a beleza da ciência e a vê como inimiga.

      O obscurantista não ouve nada além de sua própria voz e verdade. Sabe o que é pior? O obscurantista não está só na disciplina de Ensino Religioso. Ele tem nela mais um instrumento...

É PARA PENSAR!!!

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